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"Qualquer arquivo tem algo de fluxo, fissura e quebra, abertura e separação,

assim como a capacidade inherente de producir um dispositivo-espelho,

uma alucinação generadora de realidade."  Achille Mbembe

 

Arquivo Atlântico é um projeto de investigação e criação artística que propõe pensar a colonialidade a partir da elaboração de um arquivo: um conjunto de textos, imagens, relatos e gestos que têm o potencial de informar e problematizar o presente. O projeto surgiu da vontade de olhar para a história dos vários territórios banhados pelo Oceano Atlântico para compreender as formas de ocupação, extração, hierarquização, exclusão e extermínio que marcam, ainda hoje, a relação entre o 'Norte' e o 'Sul globais'. A partir do engajamento com diferentes materiais, nos propomos a abordar o arquivo não apenas como evidência de um passado a serviço de uma certa historicidade, mas enquanto matéria generativa que permite inaugurar outras leituras do presente. Trabalhando com uma ampla gama de fontes – filmes, documentos oficiais, literatura, registos sonoros, narrativas orais – temos explorado como práticas criativas e composicionais podem resgatar a capacidade afetiva desses materiais e permitir a desconstrução de narrativas e visualidades que caracterizam um imaginário de matriz colonial. Mais do que sobre a história, Arquivo Atlântico é uma investigação sobre a memória, sobre a possibilidade de rememorar e remembrar, de forma diferente, lugares, povos e saberes. É uma tentativa de entretecer histórias pessoais com os relatos históricos e entender como, ao nos posicionarmos em relação a essas narrativas, podemos traçar conexões, inaugurar diálogos, fomentar imaginários e abrir espaço para outras leituras do presente.

Ao longo do processo,  temos vindo a debruçar-nos sobre diferentes materiais que se constituem como vestígios dos processos de colonização, gestão da vida e ordenação do mundo que marcaram os territórios do sul global, buscando compreender as diferenças e simetrias que emergem entre eles, e sobretudo, a nossa implicação nos processos que as refletem. Na mesma linha dos nossos últimos projetos coreográficos, em especial no contexto da investigação de Ad Extra, desenvolvemos estratégias que procuram aprofundar as relações entre a visualidade e o corpo, investigando formas de romper com os mecanismos de representação contidos nos materiais fílmicos e fotográficos a partir de um compromisso sensorial e físico. Se, por um lado, o projecto Arquivo Atlântico manifesta um impulso forense, no sentido de revisitar documentos e registos que situam determinados acontecimentos históricos, por outro, o projeto arrisca ‘voos poéticos’, traçando conexões e movimentos especulativos enraizados em aspectos da experiência do real.

 

Percurso da investigação

 

Um dos pilares do projeto têm sido as residências de investigação, que têm permitido um aprofundamento da nossa pesquisa em territórios e lugares que são centrais para a elaboração crítica e estética que propomos fazer através do projeto.

A primeira residência, realizada na OSSO Coletivo em 2020, permitiu-nos  desenvolver uma abordagem inicial ao projeto, focando-nos sobretudo na inter relação entre as nossas posições, experiências e memórias em relação à discussão que propomos fazer através do projeto, nomeadamente uma abordagem crítica em relação à memória da experiência histórica do colonialismo, e à colonialidade como continuação dessas dinâmicas nos arranjos sociais e políticos contemporâneos. O processo culminou na criação de duas peças de audio que formaram parte da programação da Eira#3, plataforma rádio e programa publico desenvolvido pela OSSO, e constituíram a base do podcast do projeto.

 

Em 2021 e 2022, realizamos outras duas residências, desta vez em Cabo Verde e nos Açores, territórios que por terem sido centrais para o projeto colonial português, nos dão pistas não só dos impactos da imposição desse sistema nas comunidades locais mas sobretudo das formas de resistência engendradas no seio dessas comunidades a tal sistema. Ambas residências configuraram momentos de pesquisa e análise em arquivos históricos regionais, de contacto e diálogo com comunidades e projetos locais, e sobretudo, de escuta e atenção à experiência de vida nesses lugares.

Os materiais resultantes desse processo têm informado a nossa abordagem e formam parte da matéria que temos vindo a elaborar na nossa prática artística e curatorial. As entrevistas que realizamos nesses contextos são parte do material sonoro que utilizamos na instalação do projeto, realizada em colaboração com o Arquipélago Centro de Artes Contemporâneas, nos Açores, e o trabalho dos artistas que conhecemos mais profundamente, sobretudo em Cabo Verde, constituíram parte dos programas de exibição de filmes que curamos ao longo de 2021, na Mala Voadora, Hosek Contemporary e PianoFabrik. 

Projeto Coreográfico | ABATE

 

O projeto coreográfico foi desenvolvido ao longo de 2022, em residência no Espaço do Tempo, em Montemor-o-Novo, na Mala Voadora, no Porto, e no Cartaxo, como parte do programa regular da Materiais Diversos. Partindo das explorações imagéticas, sonoras e textuais desenvolvidas no contexto do Arquivo Atlântico, Abate é um exercício coreográfico que explora os vestígios sonoros e visuais da violência colonial, e propõe um movimento de inclinação, de escuta e atenção às práticas de dominação e resistência que compõem o legado desse período. Um objeto híbrido que convoca tanto a matéria arquivística resultante da nossa investigação como os afetos que emergiram ao longo da nossa trajetória. 

Abate estreou no dia 29 de outubro de 2022, na Galeria José Tagarro, no Cartaxo.

 

Arquivo Atlântico se insere num momento histórico em que as práticas extrativistas e neocoloniais, assim como o seu vínculo com as dinâmicas/questões sociais, raciais e de gênero, têm pautado discussões em todo o mundo. Nesse sentido, o projeto se alia a um conjunto de iniciativas que propõe revisitar os processos históricos e reelaborar a memória coletiva a partir de práticas artísticas. De maneira mais específica, o projeto marca um momento de exploração e consolidação da abordagem teórica e metodológica que temos vindo a desenvolver, e propõe investigar, de forma continuada, um conjunto de relações que permitam mapear o presente e colocar questões para o futuro, contribuindo para a produção de práticas politicamente informadas no campo das artes performativas.

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